Alvorada — exposição de Sara Inácio
25 OUTUBRO > 25 NOVEMBRO I CAPELA FBAUL
Esta exposição resulta da investigação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos de Escultura, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa no ano letivo de 2016/17, orientado pela Prof. Drª. Virgínia Fróis.
No horto, uma escada …
Uma laranja intercepta a distancia da terra ao céu. É um corpo de terra a laranja e o jardim um pedaço do sagrado no decorrer dos dias.
O trabalho da Sara Inácio coexiste em dois terrenos: o do profano, o da cadencia dos dias (colher, comer, respirar, observar) e do sagrado sinalizando as epifanias, os encontros subtis que a transcendem e a incendeiam.
O regresso à Faculdade de Belas-Artes para continuar os seus estudos superiores no 2º ciclo de Escultura, vem adensar os pressupostos do seu percurso. Do estudo das obras de Celeida Tostes e Ana Mendieta, foca-se na origem, no feminino e no ciclo: vida, morte, vida. E deste estudo, interioriza o gesto da arte, que é em si também a repetição e a metamorfose daquele que cria. Observa o renascimento constante, espelhado nos earth art de Ana Mendieta, e aqui apresenta a sua sequência de fotografias da série Alvorada. Dessas ações na casa materna, permanece o cone de terra vegetal sobre a pedra da capela do convento, e é como um rasto desses gestos arcaicos inscritos na sua paisagem intima e propostos agora à imaginação de cada um, como sopros vitais e imateriais.
A propósito citamos Alberto Carneiro no seu Manifesto de uma arte ecológica : A Arte não está na presença física do bisonte de Altamira, mas sim na posse do que ele significa.[1]
A exposição Alvorada, tenta a conjunção das coisas simples a unidade renovada, ao que parece na companhia da poetisa[2], e assim se torna em poesia…
Virgínia Fróis
[1] Das notas para um diário entre dezembro .1968e fevereiro de 1972 , Revista de Artes Plásticas 1, outubro de 1973
[2] O sol rente ao mar te acordará no intenso azul
Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem como as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto
Sophia de Mello Breyner
Nesta exposição estão presentes obras de duas séries: Movimento Maior e Alvorada. A primeira realizou-se numa residência artística nas Oficinas da Cerâmica e da Terra, no espaço do Telheiro da Encosta do Castelo, em Montemor-o-Novo, entre Dezembro de 2015 e Março de 2016 e a segunda decorreu na Sertã (Beira Baixa), numa aldeia de familiares maternos, entre Julho e Agosto de 2016. Ambos os locais são em meio rural, facto este que permitiu um contacto aprofundado com a natureza, bem como um espaço e tempo de meditação, propícios à criação e investigação.
“Arde no incêndio de todas as estrelas,
marulha no silêncio de todo o mar,
dança nas volutas de todo o vento,
enraíza-te na fundura de toda a terra,
funde-te no abismo de todo o espaço.”[1]
Movimento Maior
Movimento Maior evoca a ordem do universo, quer na sua dimensão invisível e etérea, quer na sua vertente material e manifesta. Evoca também a força motriz subjacente a toda a criação, quer na vida, quer na arte, e que, no dizer de Sophia de Mello de Breyner, Dante designa como “aquele amor que move o sol e os outros astros”. Movimento Maior é a Unidade, a Ordem que engloba complementaridades intemporais: peso/leveza; espírito/matéria; céu/terra; permanente/efémero; particular/universal.
Lanço ao ar o vestido branco. Movimento etéreo, presença alada… Projeto-me naquele vestido, movo-me, voo com ele. Liberdade, leveza, presença espiritual, eternidade. No barro, no peso e na densidade da matéria, modelo pregas, dobras relevos, ancoro o voo.
Alvorada
Esta série resulta de um processo meditativo cuja intenção foi a de criar um sentimento de unidade com a terra. Trabalhando a terra, elemento físico e simbólico, cria-se uma ligação com o local, com o planeta, com o cosmos.
Escolho um recanto de terra, à sombra da laranjeira, entre os morangueiros e o hipericão. Desde há décadas este solo tem sido de cultivo- estrumado, semeado, plantado, regado. Terra solta, não argilosa, carregada de matéria orgânica. No chão modelo curvas, ondulações, escavo sulcos com as mãos. É a primeira vez que esta terra é cavada sem ser para fins agrícolas. É a primeira vez que, neste lugar, a terra é erguida sem ser para construir uma parede. Formas feitas ao nascer do sol. Formações na terra. Formas que vou transformando- uma dá origem à seguinte. Sequência, encadeamento, fluxo de formas. Ligação com a terra, viagem a espaços internos, sensação extática, circular, movimentos em espiral. Linhas, quadrantes, divisões – algo celular, montanhoso, vulcânico. Aliso, espalho, escavo, aplano, arredondo, pressiono, furo, aperto, calco, agarro, vejo, componho, formo, transformo, edifico, compacto, contorço, curvo. Detenho-me nos detalhes. Tenho tempo. Renovo-me a cada forma. Solto a pele antiga como a serpente aqui presente. Escuto o som da terra. O silêncio do interior da terra – a linguagem do início do tempo.
Sara Inácio
[1] BORGES, Paulo – A cada instante estamos a tempo de nunca haver nascido. Sintra: Zéfiro, 2008, p.81.